sábado, 12 de novembro de 2016

Precisamos conversar sobre o bullying dentro da acadêmia

ou Sobre a insustentável violência de ser.


Eu suspeito que quando entramos na universidade, há um pressuposto de que todas somos adultas e, talvez por isto, não precisaríamos conversar sobre algumas coisas. Mas claro que isto não se sustenta de forma nenhuma e em quase nenhum lugar, porque os trotes estão aí para nos provar o contrário..

Eu entrei em um curso sem trote, aliás. Que sorte, não?! Já que não tem trote, não vamos sofrer nenhuma opressão das nossas colegas?! Ledo engano. Principalmente pra mim, que me sentia velha demais para cair nas pilhas erradas das bullies. Mas logo percebi que nada me protegia de não ser um alvo delas também.

Um dia do meu segundo semestre, eu estava de boa em casa, quando me chegaram prints e boatos sobre indiretas sobre ou para mim. Tipo “olha, fulana disse isto e parece que é sobre você”. Minha primeira reação foi de surpresa, pois eu nem conhecia diretamente a tal da Fulana. Claro que eu sabia que ela era do curso e que era minha veterana.

Não sei exatamente o que ela escreveu, mas o que ficou realmente na minha memória e nos meus arquivos foram estas palavras: “um aviso para os amigos e ex rolos: parem de pegar essas minas que tem cara que acabaram de descobrir que tem uma vagina”. Minha reação foi de ficar chocada “gente porque esta veterana escreveu isto?”.

No auge do meu mal estar com a situação que era de constrangimento público e pessoal - afinal se uma pessoa achou que era para mim, quantas outras pessoas do curso não achariam que era para mim também? - eu tentava ser o mais madura que eu podia, afinal eu era velha demais para estas coisas.

Neste sentido, eu parei e me perguntei: “está mensagem é ofensiva apenas para mim? Se ela tivesse sido direcionada para minhas amigas, para outras colegas ou para desconhecidas eu acharia ofensivo?" A resposta foi sim. Então, eu tinha que me indignar não por esta mensagem talvez ser para mim ou não, e sim por ela existir.


Mas claro que eu não fui completamente racional em todos os momentos e minhas reações se alternaram sobre aquela indireta em diversas maneiras:


Publicamente: não importava se era para mim ou não, importava que ela reforçava questões sobre padrões de gênero. Era machista. Pois julgar as mulheres por sua conduta, vestimenta, aparência, faz parte da cultura do estupro. As mulheres têm direito de se vestirem e se comportarem do jeito que elas quiserem.

Privadamente: não conseguia deixar de pensar que ela estava usando seus privilégios de ser uma garota branca, de ser veterana e etc para provocar uma situação de constrangimento.

Pessoalmente: eu tinha que tentar ser madura, pois eu tinha diversas ansiedades com minha autoestima, com meu cabelo, meu corpo, meu peso, com minhas roupas, com o preço das minhas roupas e etc. Não poderia deixar isto se somar a todas as outras ansiedades que eu já tinha..

Academicamente: eu estava me esforçando profundamente para lidar com as matérias que eu fazia, com a rotina de pegar 4 ônibus por dia, não podia deixar isto me abalar.

Antropologicamente (e profissionalmente): Será que ela não vê que ela está perpetuando padrões de gênero? Como que ela vai estudar outras pessoas? Como é que ela vai se deparar com alteridade? Como ela vai falar sobre as outras? Como é que ela vai escrever sobre as outras? Ela não aprendeu nada neste curso?

Entretanto, logo percebi que ela conseguiu o que ela queria. Aquela indireta, se realmente fosse para mim, tinha cumprido sua função: tinha me perturbado. Não importava em qual grau, me perturbou. Hoje faz parte da minha trajetória acadêmica e não apenas da minha trajetória pessoal.

Sinceramente eu sei que aquela pertubação veio em um momento em que eu estava bem emocionalmente, pois em outro momento, se ela tivesse vindo dois anos depois, quando eu estava com a alma despedaçada*, com certeza, teria feito um grande estrago com danos enormes à minha personalidade, provavelmente.

Apesar de conseguir pensar em tantas coisas e me distanciar de certa forma desta indireta, eu não sou tão madura quanto gostaria de ser. Esta pequena tuitada dela, há mais de quatro anos, já me fez desistir de continuar matérias que ela também se matriculou, por exemplo. Pois, pessoalmente, eu não me sinto bem perto dela.

Quando estamos na mesma sala de aula, eu tenho que tomar uma coragem enorme para falar, para tirar uma dúvida por exemplo. Eu não consigo agir normalmente, como faria em outras matérias, minha vontade de estar ali diminui… Pois, publicamente, eu não me sinto segura de expressar minhas ideias na frente dela. Eu tenho que me policiar para não deixar de ser eu mesma perto dela. Para não deixar sua presença me abalar.

Porque estou escrevendo isto? É uma vingança?


Eu acho e espero que não seja uma vingança.. É uma forma de dizer que precisamos conversar sobre bullying. Pois o bullying dentro da acadêmia é invisível. Todavia o bullying dentro da acadêmia existe e o medo do bullying acadêmico também existe.

Enfim, eu não vou dizer o nome dela e também espero que ninguém fique tentando adivinhar quem é. Pois não é uma denúncia, não é um desabafo, é uma reflexão. Apontar o dedo para ela e causar um constrangimento público e pessoal, como ela me causou, é bullying também. Ou melhor é cyberbullying também.

Não foi porque ela me constrangeu que eu devo constranger ela, assim que eu penso sobre esta situação sem grandes danos pessoais. E espero que fique bem claro que não tenho a pretensão de ter a verdade absoluta sobre este assunto. Mas foi dessa forma que encontrei para não gastar mais energia que o necessário com este caso.

Se fossem danos maiores, eu provavelmente procuraria medidas legais cabíveis e possíveis antes fazer qualquer coisa de forma autônoma. Se fossem danos maiores também, creio que eu teria que ter tido coragem para procurar ajuda, seja formal ou informal..

Estou aqui contando um caso que vivi em 2012. Este caso não contempla diversas formas de violência experienciadas na acadêmia e fora dela. Conto ele, pois percebo que todo tipo de silêncio nos faz pensar que as coisas só acontecem com a gente.. Cada vez mais acho que temos que conversar sobre tantas coisas.

Já que estou falando de violência na acadêmia, porque não estou escrevendo sobre racismo? Machismo?


Sinceramente, eu achei que seria importante escrever este texto sobre bullying/ cyberbullying, porque nunca vi ninguém falando sobre isto nestes espaços. Principalmente porque o bullying/cyberbullying não deixam de ser mais um meio de levar ofensas racistas, machistas e etc por aí.

Não quero comparar tipos de violência, não quero fazer um nivelamento de tipos de violência. Temos que conversar abertamente sobre racismo? Sim. Temos que conversar abertamente sobre machismo? Sim. Mas também temos que conversar sobre bullying? Sim também. Você não concorda comigo? Tudo bem.

O que gostaria de pautar neste texto é que: as violências diárias são demasiadamente sofisticadas e que elas não tem apenas um lado. A medida que nós acusamos as outras pessoas em vez de abrirmos o diálogo, não somos violentas também? Sendo violentas dessa forma não estamos apenas reproduzindo uma forma muito conhecida de opressão?

Voltando ao meu caso, ao caso da indireta e da fulana. Bom, quando tudo aconteceu eu pensei que tinha duas opções: a primeira era ir conversar com a fulana e segunda era seguir a minha vida. Escolhi a segunda por receio de gaslighting, então, se esta fulana por acaso fala comigo hoje em dia, eu respondo educadamente, mas não falo mais que o necessário. Não sou amiga dela, não tenho ela nas redes sociais, me policio para não ficar nutrindo raiva dela. Espero que ela tenha parado com as indiretas para quem quer que seja.

Porque eu simplesmente não respondi com uma indireta na época? Porque eu acho que uma violência não anula outra. Eu não encaro o que ela fez como um aval para fazer exatamente a mesma coisa. Porque indiretas não são diálogo, são monólogos. E nós sabemos (eu e você leitora), ou deveríamos saber, que fofocas e indiretas são formas de controle social..

Além de tudo, eu estaria abrindo um ciclo de trocas de ofensas. Porque ao responder eu estaria começando uma relação nada saudável, mesmo que fosse uma relação de trocas só para mim. Porque apesar de termos o Ensaio sobre a Dádiva, de Marcel Mauss como uma leitura clássica, ou até como um paradigma… Não problematizamos muito sobre as dádivas negativas (usando um termo cunhado por Sahlins), sobre não iniciar trocas e também de sobre romper algumas relações de trocas..

Eu realmente não sei como devemos reagir diante de violências, não acho que devemos ficar caladas, mas também não acho que devemos atuar pelas mesmas formas de violência. Acredito que da mesma forma que temos que perceber os privilégios que possuímos, o nosso lugar de fala e etc.. Também deveríamos perceber o potencial de violência que carregamos.

Este texto é uma indireta? Não. Escrevi porque gostaria de ter lido algo assim segundo semestre.. Também é um texto que escrevi, inspirada pela compra do livro “como conversar com um fascista" da Márcia Tiburi (livro da foto ao lado), qual quis registrar estas impressões sobre o tema antes da leitura do livro.

Mais uma vez reforço que esta não é a verdade sobre vida, sobre o bullying acadêmico. Eu não quero mudar o que você acha sobre nada. Se você não concordar comigo tudo bem.

* Há dois anos, quando eu estava com a alma despedaçada, foi quando um cara, que eu não conhecia me perseguiu durante meses. Um dia espero ter coragem para escrever sobre isto. E acho que com morte da Ariadne esta semana, sinto que é muito importante falar sobre este assunto também.

PS2: Eu sei que academia não tem acento. Mas sempre coloco acento sem querer. 

PS3: Faz algumas semanas que não posto, eu tendo a perder o ritmo de postagem a medida que me vejo equilibrando diversos afazeres ao mesmo tempo. Vou tentar postar semanalmente dentro do possível.