ou Sobre a insustentável violência de ser.
Eu
suspeito que quando entramos na universidade, há um pressuposto de
que todas somos adultas e, talvez por isto, não precisaríamos
conversar sobre algumas coisas. Mas claro que isto não se sustenta
de forma nenhuma e em quase nenhum lugar, porque os trotes estão aí
para nos provar o contrário..
Eu
entrei em um curso sem trote, aliás. Que sorte, não?! Já que não
tem trote, não vamos sofrer nenhuma opressão das nossas colegas?!
Ledo engano. Principalmente pra mim, que me sentia velha demais para
cair nas pilhas erradas das bullies. Mas logo
percebi que nada me protegia de não ser um alvo delas também.
Um
dia do meu segundo semestre, eu estava de boa em casa, quando me
chegaram prints e boatos sobre indiretas sobre ou para mim.
Tipo “olha, fulana disse isto e parece que é sobre você”. Minha
primeira reação foi de surpresa, pois eu nem conhecia diretamente a
tal da Fulana. Claro que eu sabia que ela era do curso e que era
minha veterana.
Não
sei exatamente o que ela escreveu, mas o que ficou realmente na minha
memória e nos meus arquivos foram estas palavras: “um aviso para
os amigos e ex rolos: parem de pegar essas minas que tem cara que
acabaram de descobrir que tem uma vagina”. Minha reação foi de
ficar chocada “gente porque esta veterana escreveu isto?”.
No
auge do meu mal estar com a situação que era de constrangimento
público e pessoal - afinal se uma pessoa achou que era para mim,
quantas outras pessoas do curso não achariam que era para mim
também? - eu tentava ser o mais madura que eu podia, afinal eu era
velha demais para estas coisas.
Neste
sentido, eu parei e me perguntei: “está mensagem é ofensiva
apenas para mim? Se ela tivesse sido direcionada para minhas
amigas, para outras colegas ou para desconhecidas eu acharia
ofensivo?" A resposta foi sim. Então, eu tinha que me indignar não por
esta mensagem talvez ser para mim ou não, e sim por ela existir.
Mas
claro que eu não fui completamente racional em todos os momentos e
minhas reações se alternaram sobre aquela indireta em diversas
maneiras:
Publicamente:
não importava se era para mim ou não, importava que ela reforçava
questões sobre padrões de gênero. Era machista. Pois julgar as
mulheres por sua conduta, vestimenta, aparência, faz parte da
cultura do estupro. As mulheres têm direito de se vestirem e se
comportarem do jeito que elas quiserem.
Privadamente: não conseguia deixar de pensar que ela estava usando
seus privilégios de ser uma garota branca, de ser veterana e etc
para provocar uma situação de constrangimento.
Pessoalmente:
eu tinha que tentar ser madura, pois eu tinha diversas ansiedades com
minha autoestima, com meu cabelo, meu corpo, meu peso, com minhas
roupas, com o preço das minhas roupas e etc. Não poderia deixar
isto se somar a todas as outras ansiedades que eu já tinha..
Academicamente:
eu estava me esforçando profundamente para lidar com as matérias
que eu fazia, com a rotina de pegar 4 ônibus por dia, não podia
deixar isto me abalar.
Antropologicamente
(e profissionalmente): Será que ela não vê que ela está
perpetuando padrões de gênero? Como que ela vai estudar outras
pessoas? Como é que ela vai se deparar com alteridade? Como ela vai
falar sobre as outras? Como é que ela vai escrever sobre as outras?
Ela não aprendeu nada neste curso?
Entretanto,
logo percebi que ela conseguiu o que ela queria. Aquela indireta, se
realmente fosse para mim, tinha cumprido sua função: tinha me
perturbado. Não importava em qual grau, me perturbou. Hoje faz parte
da minha trajetória acadêmica e não apenas da minha trajetória
pessoal.
Sinceramente
eu sei que aquela pertubação veio em um momento em que eu estava
bem emocionalmente, pois em outro momento, se ela tivesse vindo dois
anos depois, quando eu estava com a alma despedaçada*, com certeza,
teria feito um grande estrago com danos enormes à minha
personalidade, provavelmente.
Apesar
de conseguir pensar em tantas coisas e me distanciar de certa forma
desta indireta, eu não sou tão madura quanto gostaria de ser. Esta
pequena tuitada dela, há mais de quatro anos, já me fez desistir de
continuar matérias que ela também se matriculou, por exemplo. Pois,
pessoalmente, eu não me sinto bem perto dela.
Quando
estamos na mesma sala de aula, eu tenho que tomar uma coragem enorme
para falar, para tirar uma dúvida por exemplo. Eu não consigo agir
normalmente, como faria em outras matérias, minha vontade de estar
ali diminui… Pois, publicamente, eu não me sinto segura de
expressar minhas ideias na frente dela. Eu tenho que me policiar para
não deixar de ser eu mesma perto dela. Para não deixar sua presença
me abalar.
Porque estou escrevendo isto? É uma vingança?
Eu
acho e espero que não seja uma vingança.. É uma forma de dizer que
precisamos conversar sobre bullying. Pois o bullying dentro
da acadêmia é invisível. Todavia o bullying
dentro da acadêmia existe e o medo do
bullying acadêmico também existe.
Enfim, eu não vou dizer o nome dela e também espero que ninguém
fique tentando adivinhar quem é. Pois não é uma denúncia, não é
um desabafo, é uma reflexão. Apontar o dedo para ela e causar um
constrangimento público e pessoal, como ela me causou, é bullying
também. Ou melhor é cyberbullying também.
Não
foi porque ela me constrangeu que eu devo constranger ela, assim que
eu penso sobre esta situação sem grandes danos pessoais. E espero
que fique bem claro que não tenho a pretensão de ter a verdade
absoluta sobre este assunto. Mas foi dessa forma que encontrei para
não gastar mais energia que o necessário com este caso.
Se
fossem danos maiores, eu provavelmente procuraria medidas legais
cabíveis e possíveis antes fazer qualquer coisa de forma autônoma.
Se fossem danos maiores também, creio que eu teria que ter tido
coragem para procurar ajuda, seja formal ou informal..
Estou
aqui contando um caso que vivi em 2012. Este caso não contempla
diversas formas de violência experienciadas na acadêmia e fora
dela. Conto ele, pois percebo que todo tipo de silêncio nos faz
pensar que as coisas só acontecem com a gente.. Cada vez mais acho
que temos que conversar sobre tantas coisas.
Já que estou falando de violência na acadêmia, porque não estou escrevendo sobre racismo? Machismo?
Sinceramente,
eu achei que seria importante escrever este texto sobre bullying/
cyberbullying, porque nunca vi ninguém falando
sobre isto nestes espaços. Principalmente porque o
bullying/cyberbullying não deixam de ser mais
um meio de levar ofensas racistas, machistas e etc por aí.
Não quero comparar tipos de violência,
não quero fazer um nivelamento de tipos de violência. Temos que
conversar abertamente sobre racismo? Sim. Temos que conversar
abertamente sobre machismo? Sim. Mas também temos que conversar
sobre bullying? Sim também. Você não concorda comigo? Tudo
bem.
O
que gostaria de pautar neste texto é que: as violências diárias
são demasiadamente sofisticadas e que elas não tem apenas um lado.
A medida que nós acusamos as outras pessoas em vez de abrirmos o
diálogo, não somos violentas também? Sendo violentas dessa forma
não estamos apenas reproduzindo uma forma muito conhecida de
opressão?
Voltando
ao meu caso, ao caso da indireta e da fulana. Bom, quando tudo
aconteceu eu pensei que tinha duas opções: a primeira era ir
conversar com a fulana e segunda era seguir a minha vida. Escolhi a
segunda por receio de gaslighting, então, se esta fulana por
acaso fala comigo hoje em dia, eu respondo educadamente, mas não
falo mais que o necessário. Não sou amiga dela, não tenho ela nas
redes sociais, me policio para não ficar nutrindo raiva dela. Espero
que ela tenha parado com as indiretas para quem quer que seja.
Porque
eu simplesmente não respondi com uma indireta na época? Porque eu
acho que uma violência não anula outra. Eu não encaro o que ela
fez como um aval para fazer exatamente a mesma coisa. Porque
indiretas não são diálogo, são monólogos. E nós sabemos (eu e
você leitora), ou deveríamos saber, que fofocas e indiretas são
formas de controle social..
Além
de tudo, eu estaria abrindo um ciclo de trocas de ofensas. Porque ao
responder eu estaria começando uma relação nada saudável, mesmo
que fosse uma relação de trocas só para mim. Porque apesar de
termos o Ensaio sobre a Dádiva, de Marcel Mauss como uma leitura
clássica, ou até como um paradigma… Não problematizamos muito
sobre as dádivas negativas (usando um termo cunhado por Sahlins),
sobre não iniciar trocas e também de sobre romper algumas relações
de trocas..
Eu
realmente não sei como devemos reagir diante de violências, não acho
que devemos ficar caladas, mas também não acho que devemos atuar
pelas mesmas formas de violência. Acredito que da mesma forma que
temos que perceber os privilégios que possuímos, o nosso lugar de
fala e etc.. Também deveríamos perceber o potencial de violência
que carregamos.
Este
texto é uma indireta? Não. Escrevi porque gostaria de ter lido algo
assim segundo semestre.. Também é um texto que escrevi, inspirada
pela compra do livro “como conversar com um fascista" da Márcia
Tiburi (livro da foto ao lado), qual quis registrar estas impressões sobre o tema antes
da leitura do livro.
Mais
uma vez reforço que esta não é a verdade sobre vida, sobre o
bullying acadêmico. Eu não quero mudar o que você acha sobre nada.
Se você não concordar comigo tudo bem.
*
Há dois anos, quando eu estava com a alma despedaçada, foi quando
um cara, que eu não conhecia me perseguiu durante meses. Um dia
espero ter coragem para escrever sobre isto. E acho que com morte da
Ariadne esta semana, sinto que é muito importante falar sobre este
assunto também.
PS: Aproveito para indicar a leitura do texto "Precisamos falar sobre a vaidade na vida acadêmica" da Rosana Pinheiro-Machado na Carta Capital.
PS2: Eu sei que academia não tem acento. Mas sempre coloco acento sem querer.
PS3: Faz
algumas semanas que não posto, eu tendo a perder o ritmo de postagem
a medida que me vejo equilibrando diversos afazeres ao mesmo tempo.
Vou tentar postar semanalmente dentro do possível.