domingo, 4 de dezembro de 2016

Uma carta aberta para quem quiser ler sobre o curupira



04 dezembro de 2016, domingo

Para: para quem me pergunta sobre ou o que é o curupira.

No dia 14 de novembro de 2016 eu escrevi uma nota de repúdio para um blog denominado curupira estritossenso. Na qual eu dizia que não me sentia representada pelos ataques que o blog estava realizando. Até então o blog tinha feito três postagens e eu tinha entendido, a partir destas postagens, que a proposta do blog era criticar o ritmo de produção acadêmica, os centros de pesquisa em Antropologia considerados como de excelência (os Capes 7) com ênfase em críticas ao DAN-UnB e etc.

Ao conversar com outras colegas da graduação, percebi que as interpretações eram bem variadas, mas tinham um ponto em comum: deveria ter algo a ver com publicações. Uma interpretação, por exemplo, foi que curupira era uma proposta de publicação, qual o blog talvez fosse uma nova forma de revista. 
 
Outra interpretação que ouvi era que o curupira devia ser uma crítica à produção dos departamentos, que pelo ritmo de publicações, deveria haver muita coisa dispensável publicada e o blog se propunha a revisar o que era realmente importante para Antropologia.

Apesar das várias interpretações, uma das diversas coisas que me preocupou e também esteve presente na fala de outras pessoas com quem conversei era de que: neste cenário político, de cortes financeiros para a educação, um blog que aparentemente questionava publicações e programas de Antropologia, tendo em vista que muitas pessoas nem sabem o que é Antropologia, é um meio desfavorável para a manutenção da própria Antropologia (como ciência, como disciplina, como área de trabalho, e afins). 
 
Mas esta preocupação não era sobre as críticas à Antropologia, mas exatamente pela falta de críticas explicitas. As postagens do curupira eram apenas deboches, não eram críticas compreensíveis. Eram discursos de ódio, e quando eu digo que eram discursos de ódio, estou me referindo à ridicularizações e humilhações. 
 
O blog também tinha uma proposta de despublicação de artigos, que dizia visar a redução de capes, ou seja, de reconhecimento institucional que garante bolsas para as alunas e alunos, em um momento de congelamentos de gastos, pecs, o que parecia um pouco estranho dentro da pauta de educação pública atual. Assim, alguns colegas ficaram preocupados com o ingresso no programa por diversos aspectos que iam desde manutenção da bolsa até deterioração da saúde mental, tendo em vista os deboches do blog.

Estas foram algumas das perspectivas e de conversas que me motivaram a escrever uma nota de repúdio ao curupira (a nota pode ser lida na íntegra clicando aqui), além do fato de que todo dia alguém me perguntava sobre o que era o curupira (até hoje me perguntam). 
 
Bom, eu não sabia na época e hoje ainda não sei o que é o curupira, nem quem era, ou quais pessoas eram. Contudo, para mim ficava bem claro, no dia 14/11, que o curupira era uma zoeira sobre publicação, sobre avaliação da capes e que praticava bullying contra o DAN, porque deveria ser alguém local. Por isto resolvi publicizar meu repúdio.

Achei que era obvio que o que eu tinha escrito era para o curupira, porque eu falava de despublicação e afins, achei que era obvio que o que eu tinha escrito era para curupira porque eu repudiava os ataques e discursos de ódio, pois era isto que o curupira fazia, achei que era obvio que o que eu tinha escrito era para o curupira, pois enviei por e-mail pra todo mundo, porque era a forma que o curupira publicizava suas postagens. 
 
Achei que era obvio que era para a leitura de quem não sabia o que estava acontecendo, pois quem deveria saber o que estava acontecendo, devia saber o que estava acontecendo. Achei que era obvio que meu repúdio era sobre o bullying, porque estamos em 2016…

Logo a minha nota gerou diversas reações:
1) Uma resposta pública do curupira (que pode ser lida clicando aqui)
2) Algumas mensagens de apoio sobre a nota e de solidariedade sobre a resposta agressiva do curupira (principalmente das pessoas da graduação e de pessoas que entenderam que a nota era para o curupira)
3) Algumas respostas privadas que me diziam que eu estava usurpando um lugar de fala e que eu não sabia o que estava acontecendo (principalmente de pessoas da pós)
4) Algumas indiretas que também versavam sobre uma usurpação de lugar de fala e que menosprezavam minha titulação acadêmica (de pessoas de diversos lugares).

Com esta preocupação de estar usurpando um lugar de fala, desesperadamente emiti uma errata (que pode ser lida clicando aqui).

O contexto que eu não tinha/ Uma grande piada interna
Bom, as respostas/indiretas à minha nota tinham basicamente dois conteúdos: o primeiro era que estava rolando um intenso debate sobre cotas (raciais e indígenas) na pós e que eu não sabia nada sobre isto, mas que o curupira representava o transbordamento das emoções, por mais que as pessoas não soubessem e até não apoiassem quem era o curupira. E a segunda era que eu estava deslegitimando a luta de outras pessoas (outras pessoas escrito desta forma bem genérica mesmo).

Entendendo o curupira como uma grande piada interna
Bom, como já disse algumas pessoas que me escreveram ressignificaram a motivação do curupira de forma ampla, apenas dizendo que de algum forma aquele blog era na verdade sobre cotas. Assim concluí que o curupira devia ser uma grande piada interna. 
 
Assim, aqui do meu ponto de vista, a situação mudou (um plot twist) e ficou mais insustentável ainda. Vários aspectos nas respostas que vieram diretamente para mim ou que apareceram em outros lugares me incomodaram. 
 
O início do incomodo foi obviamente a resposta do próprio curupira que não comentou o conteúdo da minha nota em si, mas atacou a minha pessoa, o que foi uma legítima falácia ou argumentum ad hominem, “que é aquela pela qual atacamos o sujeito que profere uma opinião e não a opinião mesma” (TIBURI, 2016; 118). 
 
A resposta do curupira foi um ataque a minha auto estima, minha capacidade enquanto uma pessoa que poderia debater, pensar por conta própria, tirar uma nota alta em uma seleção… Foi uma tática bem comum de bullying ou definindo melhor de machismo ou até de racismo mesmo.

A primeira coisa que eu pensei quando eu li a resposta do curupira foi "se eu tivesse com a indicação do lado do meu nome que eu tivesse passado no mestrado por cotas o curupira teria me atacado desta forma?". Porque, quando o curupira zomba de eu ter passado em primeiro lugar, a única coisa que eu penso é que, eu enquanto negra, eu não deveria estar ali. Será que o curupira quis dizer que eu não tinha capacidade de tirar uma nota boa? É isto?

Porque quando uma resposta questiona minha capacidade cognitiva de pensar por mim mesma, de escrever bem, de ter capacidade de passar em primeiro lugar, este ataque não está criticando a minha nota de repúdio, ele está criticando a minha nota em um processo seletivo, ele está criticando a minha participação e meu desempenho enquanto uma mulher negra em um processo seletivo! Que fique bem claro, ou melhor bem escuro! Porque a linguagem pode ser racista sim.

A minha postura era de que o curupira não me representava, mas o curupira insinuou diversas vezes que eu estava apenas defendendo o DAN, como se eu quisesse me auto promover, chamar a atenção.. Insinuando que sem puxar saco eu não estaria em primeiro lugar e mais, que eu já me sentia professora. Porque no fundo, eu enquanto mulher negra, não deveria estar ali.. É isto? Enquanto mulher negra da graduação eu não poderia falar nada. É isto mesmo?

No fim de tudo, o curupira ainda caçoou meu agradecimento ao final da nota, qual segundo o curupira aquilo deveria ser uma mensagem subliminar, uma mensagem de socorro... Afinal a postagem até se chama "gerenciamento de crises" e eu enquanto uma mulher que se diz preocupada com a saúde mental no fim do semestre, não poderia estar falando de nenhum outro mal que não fosse uma loucura própria, é isto? É um gaslighting mesmo é isto? 
 
Enfim, a resposta do curupira foi extremamente agressiva. Foi uma grande deslegitimação de lugar de fala, enquanto mulher e enquanto mulher negra. Ademais a distorção da minha nota de repúdio feita pelo curupira em sua resposta é um gaslighting.

“Gaslighting é uma forma de abuso psicológico no qual informações são distorcidas, seletivamente omitidas para favorecer o abusador ou simplesmente inventadas com a intenção de fazer a vítima duvidar de sua própria memória, percepção e sanidade” (Fernanda Vicente, referência 1)

E eu estou distorcendo o que o curupira falou ou quis falar, interpretando suas falas? Eu acho que não. Porque a forma de escrita do curupira é: a exposição de um conteúdo raso que significa uma densidade de coisas além daquilo que está de fato escrito ou dito. Assim quando ele fala por exemplo, que eu poderia estar na verdade realizando um pedido de socorro, isto tem respaldo no machismo estrutural qual historicamente os homens interditam mulheres duvidando do que é dito por mulheres, chamando elas de loucas e etc.

Por que fico ofendida quando o curupira distorce o que eu digo, e chamo isto de gaslighting? Porque o que eu escrevi expunha o conteúdo que eu queria apresentar. Por mais que alguém ache que eu tenha me expressado mal, nada do que eu escrevi tinha a intenção de corresponder a um conteúdo implícito.

Porque o curupira não me representava

Palavras viram armas. O preconceito é um tipo de injustiça que se expõe na linguagem, mas também se cria por meio dela. (Tiburi, 2016: 134)

Curiosamente ninguém me perguntou porque o curupira não me representava. Mas a resposta seria uma nova pergunta: é realmente subversivo utilizar um tipo de estrutura linguística que é a principal forma de atacar e agredir “minorias”? Meu repúdio inicial ao curupira veio pela forma agressiva de escrever, pela violência intrínseca de cada postagem. Depois, quando me falaram que havia um contexto de discussão racial, o repúdio e a falta de representação triplicou. 
 
Muitos gatilhos de violência simbólica estão presentes na forma de escrita do curupira. Com um tipo de escrita que está organizada socialmente para realmente ser ofensiva; e é fatidicamente ofensiva pelo respaldo social! Historicamente esta forma de escrita e fala agride quem? Negras, negros, mulheres, gays, lésbicas… 
 
A forma de debochada de falar do outro, a agressividade nas frases, a ambiguidade do que é dito é a arma cotidiana dos racistas, dos machistas, dos homofóbicos, que sempre podem tirar da manga um: “você está exagerando..”. É uma forma de discurso covarde e muito própria da branquitude.

Citação de Insecure, 1ª temporada, 1º episódio
Afinal, estas violências estão em nosso cotidiano de uma forma muito escorregadia: através de construções verbais feitas para ofender e para serem dúbias ao mesmo tempo. Os colonizadores deixaram um vasto repertório de frases para destruir autoestimas com poucas palavras de forma bem rápida, sutil e eficiente. 

Por isto não me representa, eu não acho que haja transgressão em reproduzir um tipo de violência que acomete diariamente populações marginalizadas. Neste sentido, cito Audre Lorde “pois as ferramentas do mestre não irão desmantelar a casa do mestre. Elas podem nos permitir temporariamente a ganhar dele em seu jogo, mas elas nunca vão nos possibilitar a causar mudança genuína”.” (referência 2).

Neste sentido, é interessante pontuar que a linguagem constitui uma forma de vida (RIBEIRO, 2013:8). Como iremos descolonizar os discursos do racismo, do machismo, da homofobia, organizando as ideias e pleitos da mesma forma que são organizadas as falas racistas, machistas e homofóbicas? 
 
Utilizar uma forma violenta de comunicação, com um histórico de violência estrutural, não parece subversivo. Parece apenas uma forma de perpetuar as falas e discursos colonizadores. Citando Lorde de novo: “o que significa quando as ferramentas de um patriarcado racista são usadas para examinar os frutos do mesmo patriarcado? Significa que apenas os perímetros mais estreitos de mudança são possíveis e admissíveis.” (referência 2).

Carapuças para brancas e máscaras para pretas
Grada Kilomba (referência 3) conta que na casa da sua avó tinha uma imagem da Anastácia, uma mulher negra que foi escravizada no período colonial, na sala de estar. Em todas as sextas -feiras eram oferecidas a imagem da Anastácia uma vela, uma flor branca, um copo de água e outro de café sem açúcar.

A minha avó costumava me contar como Escrava Anastácia havia sido encarcerada numa máscara – como isso era comum e se passava com todos aqueles/as que falavam palavras de emancipação durante a escravidão – e eu, dizia minha avó deveria sempre me lembrar dela” (referência 3)

Kilomba diz que “o passado colonial está memorizado de tal maneira, que se torna impossível esquecê-lo”. Assim, ela nunca esquecerá a história da Escrava Anastácia. Contudo, creio que qualquer negra ou negro que entre em contato com a história da Anastácia, não pode esquecê-la também. Kilomba acrescenta que:

A máscara não pode ser esquecida. Ela foi uma peça muito concreta, um instrumento real que se tornou parte do projeto colonial europeu por mais de 300 anos. Ela era composta por um pedaço de metal colocado no interior da boca do sujeito Negro, instalado entre a língua e a mandíbula e fixado por detrás da cabeça por duas cordas, uma em torno do queixo e outra em torno do nariz e da testa. Oficialmente, a máscara era usada pelos senhores brancos para evitar que africanos/as escravizados/as comessem cana-de-açúcar, cacau ou café, enquanto trabalhavam nas plantações, mas sua principal função era implementar um senso de mudez e de medo. (referência 3)

Neste sentido Kilomba enfatiza que a máscara levanta perguntas como “Quem pode falar? Quem não pode? E acima de tudo sobre o que podemos falar?”. Além de outras questões como “Por que a boca do sujeito Negro tem que ser calada? Por que ela, ele, ou eles/elas têm de ser silenciados/as? O que o sujeito Negro poderia dizer se a sua boca não estivesse tampada? E o que é que o sujeito branco teria que ouvir?” (referência 3)

Segundo Kilomba existe um medo apreensivo de que “(…) se o/a colonizado/a falar, o/a colonizador/a terá que ouvir e seria forçado/a a entrar em uma confrontação desconfortável com as verdades do ‘Outro’”. Grada Kilomba analisa que as verdades do outro seriam “verdades que supostamente não deveriam ser ditas”, e quando ouvidas “(…) ‘deveriam’ ser mantidas ‘em silêncio como segredos’ (referência 3)

Kilomba diz que gosta bastante da expressão “mantidas em silêncio como segredos” porque ela traria a ideia de que alguém estaria prestes a revelar algo que não é permitido, algo que não se pode dizer: “Segredos como a escravidão. Segredos como o colonialismo. Segredos como o racismo”

O medo de ouvir o que possivelmente poderia ser revelado pelo sujeito Negro pode ser articulado com a noção psicanalítica de repressão, uma vez que a repressão ‘consistem em afastar algo e mantê-lo à distância do consciente’ (Freud 1923, p.17). Este é o processo pelo qual certas verdades só podem existir (na profundidade do oceano, bem lá no fundo) no inconsciente, bem longe da superfície – devido à ansiedade extrema, culpa ou vergonha que elas causam. Imaginem um iceberg flutuando na água azul, todas as verdades reprimidas ainda estão lá, porém imersas e reprimidas na profundidade. Ou seja, o sujeito sabe, mas quer tornar (e manter) o conhecido, desconhecido. (referência 3)

É muito interessante perceber que expressões que Kilomba traz para apontar este processo de repressão são expressões muito conhecidas por negras e negros quando confrontam algo que foi ouvido: “Eu não entendo”, “Eu realmente não me lembro”, “Eu não acredito”, “Eu acho que você está exagerando...”, “Eu acho que você é demasiado sensível..” . E também fazem sentido para outras opressões como o machismo e não apenas para o racismo. 
 
Kilomba deixa bem explícito que hoje em dia, apesar de não serem mais usadas máscaras de metal para calar as negras e negros, existem outros mecanismos de silenciamento que funcionam como máscaras, como a frase “eu acho que você está exagerando”, pois possuem o mesmo efeito da máscara: calar o outro.

A boca é um órgão muito especial, ela simboliza a fala e a enunciação. No âmbito do racismo, ela se torna o órgão da opressão por excelência, pois é o órgão que enuncia certas verdades desagradáveis e precisa, portanto, ser severamente confinada, controlada e colonizada.

Falar torna-se, então, praticamente impossível. Não é que nós não tenhamos falado, o fato é que nossas vozes têm sido constantemente silenciadas através de um sistema racista. Esta impossibilidade ilustra como falar e silenciar emergem como um projeto análogo. Um projeto entre sujeito falante e os seus/ suas ouvintes.(referência 3)

Neste sentido, reproduzir uma estrutura de linguagem tão violenta parece apenas esconder as agressores e agressores em carapuças brancas e silenciar as agredidas e agredidos em máscaras feitas para pretas. Como isto é subversivo? Como isto é engraçado?

Porque escrevo a carta

Muitas pessoas estão me perguntando ultimamente como eu estou me sentido, agora que eu “já sei” que devem ter pessoas que não gostam de mim na pós? Eu apenas digo que eu me sinto normal, porque eu nunca tive expectativa de ser bem recebida em nenhum lugar. Pois nem quando eu entro em uma loja, eu tenho expectativa de ser bem recebida, pelo contrário, minhas expectativa é de que o segurança vai me seguir. 

Ensino fundamental, ensino médio, graduação, enfim, nenhum lugar é seguro não. Nenhum lugar foi diferente.

(Imagem ao lado:"Se você manter silêncio sobre suas dores, eles vão te matar e dizer que você gostou" Zora Neale Hurston, arte: Kate Whol)
 
Ridicularizarem minha experiência na graduação, algo que foi bem significativo, me falaram que eu não deveria falar nada também. Você apresenta seu lugar de fala e dizem que você tá se promovendo, você apresenta uma experiência, dizem que você tá querendo ensinar as pessoas, você fala algo porque não se sente representada, acham que você é arrogante. 
 
Sinceramente, o que mais me assustou foi a polarização de tudo, pois se eu repudiei um blog anonimo, muitas pessoas entenderam automaticamente que eu estava imediatamente em uma posição de defender o DAN. Sério, não há nenhuma outra posição? É tudo assim com dois polos? Duas posições muito bem demarcadas e definidas e se você não concorda com uma, você é da outra? 

Também ridicularizaram minha “postura pró diálogo”. E acho que aqui é o que mais tem sido chato. Pois dizem que eu disse algo que não disse (gaslighting) e a partir disso me acusam de diversas coisas. Enfim, corro o risco de ser lida de forma distorcida de novo. Mas tem sido cansativo explicar tudo isto, então fica aí escrito.

Se há pessoas negras e indígenas (e pessoas brancas) que se identificam com este tipo de ação do curupira, tudo bem, vocês têm todo o direito de se identificarem com o que vocês acham apropriado. Mas quando eu digo que ele não me representa, estou dizendo apenas que ele não me representa! E não tem nenhuma mensagem subliminar nisto! 
 
Continua não me representando, pois eu não vejo como este tipo de ação (do curupira) empodera as pessoas que sofreram racismo, seja institucional ou estrutural, ou machismo, homofobia ou alguma outra opressão, a falarem abertamente sobre isto. É um tipo de ação que continua nos colocando no lugar de que não podemos falar, seja porque é preciso ser anonimo, ou porque qualquer outra voz é uma ameaça, também não me representa.

No movimento negro, no movimento feminista, ou no feminismo negro e em outros movimentos sociais o corpo é muito importante, e eu ainda não vejo como trazer nenhuma discussão racial de forma descoporificada e de forma debochada. Não me representa quem trata o assunto como piada ou brincadeira. 
 
E quando eu digo que não me representa, eu quero dizer que não me representa. E quando eu digo isto, estou falando sobre ligar a TV e não me ver representava em nenhum lugar, ler um livro e não me ver representada em nenhum lugar. Se você se sente representada ou representado, que bom pra você, mas isto não me torna automaticamente representada.

Você pode, por exemplo, assistir um filme como Histórias Cruzadas (The Help, 2012) e se sentir representado. E eu tenho o direito de assistir o mesmo filme e achar que no final a estrutura social continuou a mesma e as mulheres negras continuam sem poder de decisão e sem voz.

Escuro que eu nunca achei que minha nota seria lida de forma unânime ou até que fosse bem recebida. Mas sinceramente a única coisa que eu não esperava era a ideia de que eu devia ficar calada, ou até de que mesmo calada eu estaria errada. Que eu não devia escrever ou não tinha o direito de querer que alguém leia o que eu escrevo.

Sei que haters gonna hate de qualquer forma, não quero mudar o opinião de ninguém e muito menos de quem nem quer me ouvir. Este texto não é uma indireta, eu não mando indiretas. Escrevo porque ainda me perguntam muito sobre o curupira e é isto que eu sei, e também sei que está é a minha versão de toda a história. Estou apenas contando o que aconteceu comigo e ninguém precisa se sentir representado por mim também.

Andreza Ferreira

PS: toda esta história me lembrou muito o começo do texto Racismo e Sexismo na cultura brasileira da Lélia Gonzalez, segue abaixo o trecho:
 
Referências:

Djamila Ribeiro. Linguagem, gênero e filosofia: uma abordagem wittgensteiniana. La Plata, FAHCE – UNLP

Márcia Tiburi. Como conversar com um fascista, reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro. Rio de Janeiro: recorde, 2016.

Referência 1: Fernanda Vicente, disponível em: http://www.geledes.org.br/14-sinais-de-que-voce-e-vitima-de-abuso-psicologico-o-gaslighting/#gs._sqRxu0

Referência 2: Audre Lorde, disponível em: http://www.geledes.org.br/mulheres-negras-as-ferramentas-do-mestre-nunca-irao-desmantelar-a-casa-do-mestre/#gs.0gGTi_Y

Referência 3: Grada Kilomba, disponível em : http://www.goethe.de/mmo/priv/15259710-STANDARD.pdf


OBS: Enfim, acho que esta é minha última postagem aqui no artesanato intelectual, vou migrar de plataforma, dá muito trabalho arrumar as fontes aqui no blogspot. Também acho que é minha última postagem do ano, pois não vou ter tempo de arrumar outro blog por agora.  Boas festas, até 2017.

sábado, 12 de novembro de 2016

Precisamos conversar sobre o bullying dentro da acadêmia

ou Sobre a insustentável violência de ser.


Eu suspeito que quando entramos na universidade, há um pressuposto de que todas somos adultas e, talvez por isto, não precisaríamos conversar sobre algumas coisas. Mas claro que isto não se sustenta de forma nenhuma e em quase nenhum lugar, porque os trotes estão aí para nos provar o contrário..

Eu entrei em um curso sem trote, aliás. Que sorte, não?! Já que não tem trote, não vamos sofrer nenhuma opressão das nossas colegas?! Ledo engano. Principalmente pra mim, que me sentia velha demais para cair nas pilhas erradas das bullies. Mas logo percebi que nada me protegia de não ser um alvo delas também.

Um dia do meu segundo semestre, eu estava de boa em casa, quando me chegaram prints e boatos sobre indiretas sobre ou para mim. Tipo “olha, fulana disse isto e parece que é sobre você”. Minha primeira reação foi de surpresa, pois eu nem conhecia diretamente a tal da Fulana. Claro que eu sabia que ela era do curso e que era minha veterana.

Não sei exatamente o que ela escreveu, mas o que ficou realmente na minha memória e nos meus arquivos foram estas palavras: “um aviso para os amigos e ex rolos: parem de pegar essas minas que tem cara que acabaram de descobrir que tem uma vagina”. Minha reação foi de ficar chocada “gente porque esta veterana escreveu isto?”.

No auge do meu mal estar com a situação que era de constrangimento público e pessoal - afinal se uma pessoa achou que era para mim, quantas outras pessoas do curso não achariam que era para mim também? - eu tentava ser o mais madura que eu podia, afinal eu era velha demais para estas coisas.

Neste sentido, eu parei e me perguntei: “está mensagem é ofensiva apenas para mim? Se ela tivesse sido direcionada para minhas amigas, para outras colegas ou para desconhecidas eu acharia ofensivo?" A resposta foi sim. Então, eu tinha que me indignar não por esta mensagem talvez ser para mim ou não, e sim por ela existir.


Mas claro que eu não fui completamente racional em todos os momentos e minhas reações se alternaram sobre aquela indireta em diversas maneiras:


Publicamente: não importava se era para mim ou não, importava que ela reforçava questões sobre padrões de gênero. Era machista. Pois julgar as mulheres por sua conduta, vestimenta, aparência, faz parte da cultura do estupro. As mulheres têm direito de se vestirem e se comportarem do jeito que elas quiserem.

Privadamente: não conseguia deixar de pensar que ela estava usando seus privilégios de ser uma garota branca, de ser veterana e etc para provocar uma situação de constrangimento.

Pessoalmente: eu tinha que tentar ser madura, pois eu tinha diversas ansiedades com minha autoestima, com meu cabelo, meu corpo, meu peso, com minhas roupas, com o preço das minhas roupas e etc. Não poderia deixar isto se somar a todas as outras ansiedades que eu já tinha..

Academicamente: eu estava me esforçando profundamente para lidar com as matérias que eu fazia, com a rotina de pegar 4 ônibus por dia, não podia deixar isto me abalar.

Antropologicamente (e profissionalmente): Será que ela não vê que ela está perpetuando padrões de gênero? Como que ela vai estudar outras pessoas? Como é que ela vai se deparar com alteridade? Como ela vai falar sobre as outras? Como é que ela vai escrever sobre as outras? Ela não aprendeu nada neste curso?

Entretanto, logo percebi que ela conseguiu o que ela queria. Aquela indireta, se realmente fosse para mim, tinha cumprido sua função: tinha me perturbado. Não importava em qual grau, me perturbou. Hoje faz parte da minha trajetória acadêmica e não apenas da minha trajetória pessoal.

Sinceramente eu sei que aquela pertubação veio em um momento em que eu estava bem emocionalmente, pois em outro momento, se ela tivesse vindo dois anos depois, quando eu estava com a alma despedaçada*, com certeza, teria feito um grande estrago com danos enormes à minha personalidade, provavelmente.

Apesar de conseguir pensar em tantas coisas e me distanciar de certa forma desta indireta, eu não sou tão madura quanto gostaria de ser. Esta pequena tuitada dela, há mais de quatro anos, já me fez desistir de continuar matérias que ela também se matriculou, por exemplo. Pois, pessoalmente, eu não me sinto bem perto dela.

Quando estamos na mesma sala de aula, eu tenho que tomar uma coragem enorme para falar, para tirar uma dúvida por exemplo. Eu não consigo agir normalmente, como faria em outras matérias, minha vontade de estar ali diminui… Pois, publicamente, eu não me sinto segura de expressar minhas ideias na frente dela. Eu tenho que me policiar para não deixar de ser eu mesma perto dela. Para não deixar sua presença me abalar.

Porque estou escrevendo isto? É uma vingança?


Eu acho e espero que não seja uma vingança.. É uma forma de dizer que precisamos conversar sobre bullying. Pois o bullying dentro da acadêmia é invisível. Todavia o bullying dentro da acadêmia existe e o medo do bullying acadêmico também existe.

Enfim, eu não vou dizer o nome dela e também espero que ninguém fique tentando adivinhar quem é. Pois não é uma denúncia, não é um desabafo, é uma reflexão. Apontar o dedo para ela e causar um constrangimento público e pessoal, como ela me causou, é bullying também. Ou melhor é cyberbullying também.

Não foi porque ela me constrangeu que eu devo constranger ela, assim que eu penso sobre esta situação sem grandes danos pessoais. E espero que fique bem claro que não tenho a pretensão de ter a verdade absoluta sobre este assunto. Mas foi dessa forma que encontrei para não gastar mais energia que o necessário com este caso.

Se fossem danos maiores, eu provavelmente procuraria medidas legais cabíveis e possíveis antes fazer qualquer coisa de forma autônoma. Se fossem danos maiores também, creio que eu teria que ter tido coragem para procurar ajuda, seja formal ou informal..

Estou aqui contando um caso que vivi em 2012. Este caso não contempla diversas formas de violência experienciadas na acadêmia e fora dela. Conto ele, pois percebo que todo tipo de silêncio nos faz pensar que as coisas só acontecem com a gente.. Cada vez mais acho que temos que conversar sobre tantas coisas.

Já que estou falando de violência na acadêmia, porque não estou escrevendo sobre racismo? Machismo?


Sinceramente, eu achei que seria importante escrever este texto sobre bullying/ cyberbullying, porque nunca vi ninguém falando sobre isto nestes espaços. Principalmente porque o bullying/cyberbullying não deixam de ser mais um meio de levar ofensas racistas, machistas e etc por aí.

Não quero comparar tipos de violência, não quero fazer um nivelamento de tipos de violência. Temos que conversar abertamente sobre racismo? Sim. Temos que conversar abertamente sobre machismo? Sim. Mas também temos que conversar sobre bullying? Sim também. Você não concorda comigo? Tudo bem.

O que gostaria de pautar neste texto é que: as violências diárias são demasiadamente sofisticadas e que elas não tem apenas um lado. A medida que nós acusamos as outras pessoas em vez de abrirmos o diálogo, não somos violentas também? Sendo violentas dessa forma não estamos apenas reproduzindo uma forma muito conhecida de opressão?

Voltando ao meu caso, ao caso da indireta e da fulana. Bom, quando tudo aconteceu eu pensei que tinha duas opções: a primeira era ir conversar com a fulana e segunda era seguir a minha vida. Escolhi a segunda por receio de gaslighting, então, se esta fulana por acaso fala comigo hoje em dia, eu respondo educadamente, mas não falo mais que o necessário. Não sou amiga dela, não tenho ela nas redes sociais, me policio para não ficar nutrindo raiva dela. Espero que ela tenha parado com as indiretas para quem quer que seja.

Porque eu simplesmente não respondi com uma indireta na época? Porque eu acho que uma violência não anula outra. Eu não encaro o que ela fez como um aval para fazer exatamente a mesma coisa. Porque indiretas não são diálogo, são monólogos. E nós sabemos (eu e você leitora), ou deveríamos saber, que fofocas e indiretas são formas de controle social..

Além de tudo, eu estaria abrindo um ciclo de trocas de ofensas. Porque ao responder eu estaria começando uma relação nada saudável, mesmo que fosse uma relação de trocas só para mim. Porque apesar de termos o Ensaio sobre a Dádiva, de Marcel Mauss como uma leitura clássica, ou até como um paradigma… Não problematizamos muito sobre as dádivas negativas (usando um termo cunhado por Sahlins), sobre não iniciar trocas e também de sobre romper algumas relações de trocas..

Eu realmente não sei como devemos reagir diante de violências, não acho que devemos ficar caladas, mas também não acho que devemos atuar pelas mesmas formas de violência. Acredito que da mesma forma que temos que perceber os privilégios que possuímos, o nosso lugar de fala e etc.. Também deveríamos perceber o potencial de violência que carregamos.

Este texto é uma indireta? Não. Escrevi porque gostaria de ter lido algo assim segundo semestre.. Também é um texto que escrevi, inspirada pela compra do livro “como conversar com um fascista" da Márcia Tiburi (livro da foto ao lado), qual quis registrar estas impressões sobre o tema antes da leitura do livro.

Mais uma vez reforço que esta não é a verdade sobre vida, sobre o bullying acadêmico. Eu não quero mudar o que você acha sobre nada. Se você não concordar comigo tudo bem.

* Há dois anos, quando eu estava com a alma despedaçada, foi quando um cara, que eu não conhecia me perseguiu durante meses. Um dia espero ter coragem para escrever sobre isto. E acho que com morte da Ariadne esta semana, sinto que é muito importante falar sobre este assunto também.

PS2: Eu sei que academia não tem acento. Mas sempre coloco acento sem querer. 

PS3: Faz algumas semanas que não posto, eu tendo a perder o ritmo de postagem a medida que me vejo equilibrando diversos afazeres ao mesmo tempo. Vou tentar postar semanalmente dentro do possível. 

domingo, 23 de outubro de 2016

Sobre queimar o filme, mas salvar alguns negativos: entre lentes ocidentais e mulheres leste- timorenses

A partir de amanhã, vamos (eu a mais algumas colegas) apresentar na semana universitária um pouco de nossos trabalhos realizados a através do projeto "Cooperação para Pesquisa e Formação em Ciências Sociais em Timor-Leste" financiado pela CAPES/AULP. Temos a expectativa de que o público seja composto em sua maioria por alunas de ensino médio. Desta forma, bate aquele pequeno desespero de pensar em como fazer uma apresentação interessante (risos).
Por isto, trago aqui uma síntese do que pretendo apresentar e aceito sugestões e opiniões sobre forma e conteúdo. A apresentação será seguida de fotos, contudo não colocarei todas aqui. Segue uma condensação da ideia geral:


(começo) 
Provavelmente todas vocês tiram várias fotos por dia, por semana ou por mês. Provavelmente todas vocês tiram mais fotos que suas mães, quando elas tinham suas idades. A fotografia em formato digital, nos permite registrar nosso cotidiano, ao mesmo tempo que faz parte do nosso cotidiano. Agora mesmo, diversas pessoas aqui presentes, tem a possibilidade de tirar um celular do bolso ou da bolsa e tirar uma foto. 
 
Bom, apesar de todas vocês tirarem dezenas, centenas ou milhares de fotos… Eu duvido que vocês postem todas as fotos que vocês tiraram. Talvez vocês não pensem muito sobre isto toda vez que vão escolher uma foto, mas vocês selecionam fotos. Porém, como vocês escolhem as fotos que vão postar? Como vocês escolhem as fotos que vão mandar para as suas colegas? 
 

Eu ainda não conheço vocês, mas acho que uma resposta possível seria que vocês escolhem as fotos mais bonitas. Ou que vocês escolhem as fotos com mais qualidade. Porém, o que é bonito? O que é qualidade? Por que não apreciamos todas as fotos? Por que classificamos as fotos em postáveis e em não postáveis?



Eu fiz esta pequena introdução, porque minha apresentação é sobre isto. Vou tentar contar uma breve história, sobre algumas fotos que tirei em Timor-Leste e como algumas mulheres leste-timorenses me fizeram repensar meus pressupostos de fotos com qualidade e fotos sem qualidade... Fotos bonitas e fotos feias. 

Em 2014 fiquei quatro meses em Díli, capital de Timor-Leste fazendo uma pesquisa em antropologia. Eu pretendia estudar as tecedeiras do tais, um tecido feito de algodão, produzido apenas por mulheres. Em Díli, eu tive a sorte de encontrar um espaço, no qual eu poderia realizar esta pesquisa (frequentei este espaço de 22 de outubro de 2014 até 15 de dezembro de 2014). 

Tal espaço era o Sentru Suku Foudasaun Alola, mas Ofélia e outras mulheres se referiam ao espaço como Taibesi; “em Taibesi”, “lá em Taibesi” e eu chamava o espaço de Galpão principalmente para não confundir com o bairro homônimo, onde o Sentru Suku se localizava, que era Taibesi (Lê-se Taibesse). 

No Galpão trabalham a Ofélia, que era a manager, a Marina que trabalhava no financeiro, além de 17 mulheres entre tecedeiras e costureiras, cozinheiras e etc e 2 homens que faziam tarefas diversas. As atividades que ocorriam no Galpão eram basicamente dividas entre costura e tecelagem, mas havia pessoas que trabalhavam com outras tarefas, como cozinheira, ou assistente financeira e afins. 


Fui apresentada pela Ofélia para as mulheres do Galpão como voluntária e estudante que pesquisava cultura. Logo tive a impressão que elas (as mulheres) achavam que eu era uma espécie de assistente da Ofélia. Talvez por eu perguntar muitas coisas para Ofélia. Pois dentro de uma pesquisa em antropologia, as antropólogas costumam ter mais proximidade a uma ou duas pessoas em campo. Esta pessoa que se tem mais proximidade e diálogo, costuma ser chamada de interlocutora. 


O campo, pode ser entendido com o lugar qual se realiza a pesquisa. Assim o meu campo era o Galpão. E minha principal interlocutora era a Ofélia. Ofélia era quem mais conversava comigo, principalmente por ser a pessoa que eu menos atrapalhava em campo, e também por falar português fluente e ter o português como língua materna. 


No Galpão as costureiras e tecedeiras eram a maioria das funcionárias. Com exceção da Ofélia e da Marina, todas as outras funcionárias, pareciam ter o mesmo status, no sentido de reconhecimento entre elas. Situação percebida por mim através do meu uso da câmera em campo, a partir das fotos que tirei e mostrei para elas.


Nos primeiros dias em campo, eu disse para Ofélia que eu poderia tirar fotos do cotidiano de trabalho se ela quisesse e ela disse que seria ótimo porque assim ela poderia fazer uma exposição com as fotos lá no Galpão mesmo. Com o intuito de fazer a possível exposição, eu saia todos os dias em circuito e percorria o espaço todo tirando fotos de todas presentes. Na primeira vez que eu queria tirar foto de alguém, eu sempre perguntava se eu poderia tirar a foto; “bele foto?”, todas autorizaram. Essas circulações para tirar fotos ajudaram-me a aprender o lugar que cada uma tinha na produção, como aprender seus nomes.
No primeiro dia que levei a câmera, tirei várias fotos, porém, meu esforço de fotografar encontrou duas situações: pessoas que tinham atividades mais paradas e pessoas que tinham atividades com mais movimento. Das pessoas que estavam paradas, como por exemplo, as costureiras; eu batia apenas duas, ou três fotos porque já ficavam boas para eu entender o que estava acontecendo e esteticamente pareciam-me interessantes também. Contudo, de pessoas que estavam em movimento, como tecedeiras, eu “tinha” que tirar cinco, seis fotos para achar que uma estava boa, que não estava tremida.
Durante o almoço as mulheres pediram para ver as fotografia e aí quando viram que de uma pessoa eu tinha três fotos e de outra tinha seis, ficaram chateadas. Não falaram mais do que “Duas minhas, quatro de fulana”. Entretanto, deram-me a entender que a atenção tinha que ser igual, dividida de forma justa. Mesmo que na minha percepção algumas fotos não tinham tanta qualidade, então não contavam, por isso que eu precisava tirar outras. Mas para elas essa desigualdade numérica de fotos parecia ser o reflexo de que eu estava dando mais atenção para uma do que para outra, ou que eu não considerava tanto aquela que tinha menos fotos, que gostava mais da outra que tinha mais fotos. Era uma questão de qualidade para mim e de quantidade para elas. (trechos adaptados da minha monografia)



Aqui podemos voltar para a questão que eu fiz no começo. O que faz vocês escolherem fotos para postar? E escolher fotos para não postar? Vocês acham que o que é entendido por bonito, por exemplo, é entendido universalmente como bonito? Vocês acham que o que é entendido como com qualidade é entendido universalmente com qualidade? Será que se selecionarmos uma foto que vocês, ou alguma de vocês acha bonita, esta foto será considerada bonita por pessoas na Ásia, na África, na Europa e etc? 
 

Será que nossa relação com as fotos, de buscar ângulos perfeitos, cenários perfeitos, sorrisos perfeitos… Não nos dizem que nunca teremos fotos perfeitas? Dito, isto porque vejo várias pessoas, inclusive eu, falando “está foto estaria ótima se não fosse...” “este fundo”, “a luz”, “a qualidade”, “alguém ter passado no meio da foto”. Porque as fotos que tiramos não são perfeitas? Porque as fotos que tiramos precisam de photoshop? 


Será que a gente não tenta reproduzir fotos que são entendidas como bonitas, nas revistas, na televisão, na internet? Quando eu falo a gente, estou dizendo nós aqui, brasileiras, ocidentais.. Será que as pessoas do outro lado do mundo tem a mesma relação com a imagem e a imagem pessoal, que a gente?



Voltando, a minha conduta em campo, com as mulheres leste-timorenses. Quando eu entrei em campo, eu procurava ter pelo menos uma foto boa de cada pessoa, independente da quantidade de fotografias que eu precisasse bater para isso. Então, para mim não tinha nenhum problema ter quatro fotos de uma pessoa e duas fotos de outra pessoa. Porque no fundo, só havia uma foto, entendida por mim, como boa.


Enquanto para as mulheres, ter quatro fotos de uma e duas fotos de outra era chato, pois elas não fazia a mesma diferença que eu fazia entre fotos boas e ruins. Eu dividia as fotos em boas e ruins, porém para elas todas as fotografias eram fotografias. E elas estão certas, todas as fotografias são fotografias. Estas diferenças entre fotos boas e ruins, fotos bonitas e fotos feias, são diferenças criadas por nós. Elas não existem fora da nossa interpretação das fotos.



Esta gafe em campo, me ajudou a pensar diversas coisas. Mas com certeza está gafe me fez pensar sobre como ao chegar em campo, eu naturalizei para todas as mulheres que eu conheci, a ideia que eu tinha de fotos boas e fotos ruins. Ao mesmo tempo que elas me mostraram, que a ótica que eu tive era completamente colonizada e ocidental. Se eu não tivesse levado a câmera para campo, não pensaria em como as fotos enquanto imagens capturadas e selecionadas são construções sociais.
(fim) 


Na minha monografia abordo esta mesma situação em campo com as fotos, mas minha abordagem é outra. É voltada para o status das mulheres nas relações de trabalho. É interessante pensar como é possível olhar sob outras óticas um mesmo assunto. 

Também é engraçado pensar que cada apresentação demanda da gente uma atenção específica. E ao contrário das minhas expectativas, a ansiedade para apresentar trabalhos ainda não diminuiu e o trabalho para fazer os slides ainda é o mesmo.



Aproveito para convidar todas para assistirem a mostra Timor-Leste em Foco:

24/10 - Segunda- Feira, das 10 às 12hs.
1 - Sobre queimar o filme, mas salvar alguns negativos: entre lentes ocidentais e mulheres leste-timorenses.
Por Andreza Ferreira
2 - Paisagens culturais leste-timorenses pelas lentes de um antropólogo amador em busca do campo. Por Miguel Filho


25/10 - Terça-Feira, das 10 às 12hs
1 - “Agora fazemos assim”: o projeto Mobile Courts e o processo de transposição da modernidade no Timor-Leste contemporâneo.
Por Henrique Romanó Rocha
2 - Paisagens culturais leste-timorenses pelas lentes de um antropólogo amador em busca do campo.
Por Miguel Filho


26/10 - Quarta-feira, das 8h30min às 10hs.
1 – As Donas da Palavra. Por Daniel Simião;
2 – Sacralidades Timorenses. Por Daniel Simião, Henrique Romanó Rocha e Sarah Almeida.


27/10 - Quinta-feira
1- Cotidiano universitário em Díli: experiência acadêmica na Universidade Nacional Timor Lorosa'e. Por Sarah Almeida.
2 - "As tradicionais? Elas fazem tudo pela imaginação! A gente não! A gente tem aula, aprende certinho." - A universidade e as parteiras em Timor Leste. Por Natalia Silveira.


PS: Qualquer crítica, comentário, ou sugestão: meu e-mail é artesanatointelectual@gmail.com 
2 PS: Todas as fotos da postagem, com exceção da foto do cartaz, são fotos tiradas por mim.